quinta-feira, 17 de julho de 2008

Mentes divididas

A esquizofrenia ainda é fonte de sofrimento. Mas os atuais tratamentos permitem aos doentes uma vida próxima do normal.

Era março de 1979. Aos 20 anos, Carlos Tolovi cursava o primeiro ano de administração de empresas na PUC de São Paulo. Numa manhã, como sempre fazia antes de entrar em classe, ele foi até a lanchonete da universidade tomar um café. Uma amiga apareceu e pediu um gole da bebida. Tolovi passou-lhe a xícara. Ao beber novamente o café, o rapaz sentiu um gosto estranho, amargo demais. No ato, ele teve a certeza de que havia sido envenenado. Voltou correndo para casa, enjoado. Vomitou durante toda a tarde – o que, em sua lógica, confirmava a suspeita de que a moça tentara matá-lo. Não era nada disso, claro. Naquela manhã, Tolovi havia adentrado o inferno da esquizofrenia. Ele passou a ser acossado por delírios persecutórios. A visão de um grupo de pessoas conversando, por exemplo, podia ser interpretada como um sinal inequívoco de que algo estava sendo tramado contra ele. Aos delírios, seguiam-se crises profundas de isolamento. A vida foi suspensa. Mas, graças aos remédios, às sessões de psicanálise e aos encontros com o grupo de auto-ajuda Fênix, desde 2005, Tolovi está livre dos surtos. "Quando fico duas noites sem dormir e perco o apetite, já sei que a coisa está vindo e imediatamente procuro o meu médico para que ele aumente as doses da medicação", diz.

Com cerca de 1 milhão de vítimas e 56 000 novos casos a cada ano no Brasil, a esquizofrenia é uma psicose devastadora. Solapa o raciocínio, a percepção, o afeto, a vontade. Além de sofrerem delírios, os doentes são acometidos de alucinações. Escutam vozes, vêem seres imaginários. A esses surtos intercalam-se períodos de uma apatia mortificante, marcados por lentidão e desordem de pensamento. "Mais do que qualquer sintoma, a característica definidora da doença é o profundo sentimento de incompreensibilidade e inacessibilidade que o paciente provoca nas outras pessoas", escreve a americana Sylvia Nasar, no livro Uma Mente Brilhante, a biografia do matemático John Nash, hoje com 80 anos e diagnosticado aos 30. A maioria dos surtos esquizofrênicos dura de um a seis meses. Mas o horror continua mesmo quando eles passam. A lembrança dos acessos geralmente é forte demais para ser cancelada, e o doente passa a viver na expectativa de que outros ocorram. "Poucos transtornos comprometem tantas funções cerebrais como essa doença", diz Wagner Gattaz, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Descrito pela primeira vez no fim do século XIX, o transtorno foi chamado de esquizofrenia em 1908, pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939). A palavra é resultado da junção dos termos gregos skizo (divisão) e phrenos (espírito). Doença da divisão do espírito, portanto.

Em um passado não muito remoto, os doentes estavam todos condenados ao manicômio. A esquizofrenia não tem cura e configura o mais intrincado transtorno psiquiátrico. Entre as poucas certezas está a de que ela tem forte componente genético e é deflagrada por gatilhos externos. Até hoje, no entanto, não foi possível determinar um padrão para eles. Podem ser infecções graves, stress e traumas afetivos. A medicina está longe de decifrar a esquizofrenia por completo, mas os progressos registrados nas últimas décadas permitem à maioria dos pacientes levar uma vida razoavelmente normal – como Tolovi. O passo mais importante foi a descoberta de remédios capazes de controlar os surtos. O primeiro data da década de 50. Ao estudarem um anestésico para substituir a morfina, médicos franceses observaram que a substância clorpromazina, em doses elevadas, funcionava como um potente antipsicótico. Surgia, assim, a primeira geração de medicamentos contra a esquizofrenia e, juntamente com ela, a constatação de que a doença tem base orgânica – ou seja, um desequilíbrio químico-cerebral. A esquizofrenia resulta de um desarranjo na liberação de dopamina, neurotransmissor associado às sensações de prazer e de recompensa. A indústria já está na segunda geração de remédios, mais específicos e seguros. Em relação a cinqüenta anos atrás, as tentativas de suicídio foram reduzidas à metade e, atualmente, apenas 20% dos casos exigem a internação do doente – e ainda assim por, no máximo, um mês.

Recentemente, foi inaugurada uma nova frente de pesquisa em esquizofrenia. Ao estudarem o alucinógeno PCP, médicos americanos notaram que, sob o efeito da droga, os usuários eram acometidos de delírios e alucinações muito semelhantes aos deflagrados por um surto esquizofrênico. Ao analisarem por exames de imagem o cérebro dos dependentes, os médicos verificaram que, na origem dessas manifestações, havia um excesso de glutamato, um estimulador de dopamina. Agora, há pelo menos três laboratórios dedicados à criação de antipsicóticos que inibam a ação do glutamato e, conseqüentemente, da dopamina. A expectativa é que eles comecem a chegar ao mercado em até dez anos.

Os remédios são importantíssimos no restabelecimento da química cerebral. Mas, desde o fim dos anos 90, ganha força a teoria de que igualmente essencial é uma rede de apoio à vítima da esquizofrenia. Nesse capítulo, destacam-se os grupos de auto-ajuda. A troca de experiência entre os pacientes ensina-os a identificar os sinais de suas crises e, desse modo, a buscar auxílio, e não se deixar dominar pelos delírios e alucinações ou pela apatia. De cada dez doentes brasileiros, apenas dois têm essa capacidade.

Há ainda quem associe a esquizofrenia a pessoas intelectualmente sofisticadas. Essa é uma teoria sem nenhum fundamento. O que ocorre é que grandes artistas, escritores e cientistas padeciam – e padecem – do mal. É a notoriedade de tais personalidades que dá a impressão de que se trata de uma doença de iluminados. O bailarino e coreógrafo russo Vaslav Nijinsky (1890-1950), conhecido como "o deus da dança", apresentou-se pela última vez antes de completar 29 anos. Nas três décadas seguintes, permaneceu em asilos para doentes mentais – foi paciente do médico Bleuler, que deu nome à doença. O matemático Nash, interpretado no cinema pelo ator Russell Crowe, no filme Uma Mente Brilhante, também sofreu uma espécie de morte em vida. "A doença em seu grau mais avançado devastou sua capacidade para o trabalho criativo. (...) "Seus insights, antes inspirados, tornaram-se cada vez mais obscuros, contraditórios e cheios de significados puramente particulares, acessíveis apenas a ele próprio", lê-se no livro de Sylvia Nasar.

Alguns pesquisadores brasileiros montaram grupos de estudo com jovens com histórico familiar de esquizofrenia. A idéia é encontrar o padrão de gatilhos externos que, associado à genética, propicia a manifestação da doença. "Assim, talvez seja possível receitar doses baixas de medicamentos de maneira profilática, para pessoas de alto risco", diz o médico Mario Louzã, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Enquanto não há triunfo, sucedem-se as vitórias diárias, mas não menos significativas. Há quatro meses, depois de completar 50 anos, Carlos Tolovi obteve uma grande conquista – a primeira namorada desde o "café envenenado" de 1979.

Fonte:
http://veja.abril.com.br/040608/p_118.shtml

0 comentários: